No final de 2019, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 6.159/2019, flexibilizando a Lei de Cotas para as pessoas com deficiência (Lei Federal n.º 8.213, de 1991). Numa breve síntese, a citada Lei das Cotas determina que empresas com mais de 100 funcionários mantenham em seus quadros entre 2% e 5% das vagas para a contratação de pessoas com deficiência. A proposta enviada pelo Governo ao Congresso propos duas formas alternativas à contratação de trabalhadores com deficiência. Na prática, se o Projeto for aprovado, a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência deixará de existir.
Na ocasião, além de não ouvir os verdadeiros destinatários da política pública, o Governo ainda solicitou regime de urgência para a votação do referido Projeto. Porém, o pedido de urgência constitucional foi devidamente rechaçado. Seguramente, um projeto que visa tratar da questão da inclusão, com repercussão significativa em direitos e benefícios já conquistados, não poderia ser analisado “a toque de caixa”. Desde essa derrota no pedido de urgência (ainda em dezembro de 2019), o PL n.º 6.159/2019 encontra-se sem tramitação, no aguardo do andamento ordinário no Congresso Nacional. Certamente, o Governo não conseguiu, na urgência, “passar essa boiada”.
Nessa época, tivemos a oportunidade de escrever, aqui mesmo neste jornal de folhas, que esse Projeto do Governo Federal causava indignação, mas não surpresa, e lembramos uma fala do atual Presidente, então candidato, que se posicionava contra quaisquer cotas e direito das minorias e desejava fazer do Brasil um só país, com uma só bandeira, “sem esse negócio de minorias.”
Pois bem! Não satisfeito com essa tentativa de impor às pessoas com deficiência um grande revés, e dando sequência a essa lógica perversa de mitigar direitos das minorias, o Governo, utilizando-se do mesmo “modus operandi” de não debater com os atores envolvidos, lançou, de maneira antidemocrática, sua nova Política Nacional de Educação Especial, por meio do Decreto n.º 10.502, de 30/09/2020, divulgada como “equitativa” e “inclusiva”. De logo, tal Política foi alvo de críticas contundentes por gestores, especialistas e entidades representativas de pessoas com deficiência. Numa reação imediata no Parlamento, deputados federais e senadores apresentaram Decretos Legislativos solicitando a suspensão dessa nova ordem.
Em suma, essa nova Política de Educação Especial incentiva a segregação das pessoas com deficiência e a criação de escolas especiais. Sem dúvidas, haveria uma perda social relevante, a partir do desmonte de toda a construção de direitos adquiridos ao longo de décadas. O Decreto representa a tentativa de mais um retrocesso, haja vista a proposição do retorno ao modelo de separação que existia no século passado e fracassou. A segregação em escolas especiais não condiz com os tempos atuais de reconhecimento e valorização das pessoas com deficiência.
Com os avanços da legislação, mormente a partir da Constituição de 1988, e com o movimento social das pessoas com deficiência, essa mentalidade segregacionista foi perdendo espaço. A sociedade foi compreendendo claramente que, quando segrega um grupo, está, na verdade, discriminando, elegendo quais são as pessoas que podem acessar os espaços comuns e merecem estar no convívio e quais são aquelas que não merecem. Isso seria uma abjeta espécie de hierarquização da vida. É um princípio não só ilegal, como também imoral. Não pode ser um horizonte ético da nossa humanidade, porque todos perdemos com isso. Quando não podemos conviver com as diferenças, o nosso repertório de mundo se empobrece, apequena-se.
Segundo o Censo Escolar 2019 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), há 1.250.967 estudantes com deficiência na Educação Básica no Brasil. Desses, 87% estão em escolas regulares e em classes comuns, enquanto 13% estão em escolas ou classes especiais. Inequivocamente, esses relevantes dados representam um importante avanço na inclusão durante décadas. Não cabem retrocessos!
Com esse pensar, e exercendo seu papel de guardião da Constituição Federal, em uma das últimas sessões de 2020, o STF manteve a derrubada ao Decreto do Governo Federal, já determinada anterior e monocraticamente pelo relator Dias Toffoli. Sete ministros entenderam que a nova Política é inconstitucional, não prioriza a inclusão de pessoas com deficiência na área da educação e que iria na contramão do que diz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Portanto, mais uma vez, e graças à atuação legítima dos outros Poderes da República, foram preservados os avanços e os direitos das pessoas com deficiência. Esse equilíbrio é a essência da teoria da separação dos poderes, muito bem pensada por Aristóteles e consagrada pelo Barão de Montesquieu, a partir da possibilidade de um poder controlar o outro, com seus mecanismos de freios e contrapesos. Essa nova tentativa de retrocesso social foi devidamente freada. Infelizmente, pelo ordenamento jurídico pátrio, somente na esfera penal as tentativas são puníveis com certo rigor. Porém, torcemos também para que na esfera política o povo possa ter conhecimento e se recorde desses reais fatos para aplicar a devida penalidade nas urnas em 2022.
*Mestre em Políticas Sociais e Cidadania. Secretário-geral do TCE/BA. Professor. Escritor.